AS teologias negativas partem da incompreensibilidade das divindades. Se os deuses são crucificados pelos próprios homens não é de espantar que se desconfie demasiado da fragilidade da divindade que assim se deixou atormentar, agonizando numa cruz. Um mistério que se presta a grandes pompas e rituais de rezas, sacrifícios, cânticos, incensos e muitas procissões acerca das quais um arcebispo de Braga escrevia em 1639, muito antes do acordo ortográfico “que se fação com toda a veneração possível, que vão todos nellas com muita quietação, cantando. Ou rezando, sem praticarem, nem converssarem huns com os outros: & que vão os homens apartados das mulheres, por evitar escândalos: & que se ordenem de maneira, que todos os que forem oução Missa, ou antes ou depois, principalmente sendo dia de obrigação da Igreja”.[1]
Tempos depois, Friedrich Nietzsche enervou-se muito com isto, como é sabido e concluiu que deus estava morto.
Não há como rodear estes cruzamentos paradoxais a não ser construindo uma rotunda e assim se contornará a questão pelo lado direito. Para contrariar a expressão da religiosidade a partir da dor, da expiação e da morte e ter a alegria da ressureição, deve-se alegrar este dispositivo com enfeites vistosos. O cruzeiro – símbolo fundamental na sacralização dos lugares -, ora posto nos lugares altos, nos calvários, ora nos adros, nos caminhos das vias-sacras, ora assinalando a morte trágica de alguém, serve também para intimidar os demónios, as bruxas e as almas penadas que atormentam o povo nas encruzilhadas dos caminhos. Na rotunda do cruzeiro essas assombrações passarão todas a girar eternamente para o mesmo lado até enjoarem.
Quando, em 1906, Eugène Hénard redesenhou a Étoile em Paris para resolver cruzamentos complicados entre uma dúzia de avenidas, chamou-lhe carrefour à giration. A congestão de carros e cavalos, cada um circular como calhava, era pior que assombração.
A rotunda é uma rótula, uma plataforma para onde se converge e diverge na cartografia complicada dos movimentos. Este giratório e o próprio ritual do movimento circular instauram um momento excepcional nos labirintos das estradas e das circulações. Sendo a facilidade da mobilidade aquilo que aumenta a importância relacional dos lugares, as rótulas ou os nós dos percursos adquirem uma importância específica, espécie de hiper-lugares ou lugares de múltiplas dimensões onde se podem condensar usos e apropriações, intensificar sociabilidades e signos profanos e sagrados.
Oremos pois.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.
[1] Cit. em Paula C. M. CARDONA (2009) “Procissões sacras: arte e equipamentos no universo das confrarias” Revista da Faculdade de Letras – Ciências e Técnicas do Património, Porto 2008-2009 I Série, Vol. VII-VIII, pp. 127-149