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Rua da estrada do fim do mundo

Rua da estrada do fim do mundo

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NO limite entre o fim do mundo e o resto existe apenas um muro branco que se vai estendendo à medida que se fixam as decisões sobre quem ou o quê vai findar e onde. Os cemitérios e outros espaços, edifícios ou memoriais onde se representa o fim, a morte, a eternidade e outras ocorrências explicadas por palavras definitivas, também fazem parte do fim do mundo. Pode parecer estranho mas não é. Se nomearmos essas tão solenes categorias por outras palavras como quem diz à criança triste que a mãe foi fazer uma viagem muito longe e talvez demore algum tempo para voltar, tudo de repente toma outro sentido. Assim são as palavras sem as quais o mundo e outras ficções seriam impossíveis de pensar.

No fim do mundo há apenas um muro branco e depois uma planura de erva seca. Restam algumas frestas para circular entre o fim do mundo e o outro mundo sem fim. Amanhã veremos se o muro avançou por aí. Ou depois.

É tudo bastante silencioso sem bombas a atordoar os céus, bolas de fogo explodindo, partículas invisíveis como lâminas, faiscando, atravessando tudo como um ácido ou fagulhas mínimas como gumes. Não há cavaleiros ameaçadores, justiceiros, faces terríveis de deuses por trás de castelos de nuvens e trovões, avisos, juízos finais.

Tudo decorre sem juízo algum. Não há juiz, julgamentos, sentenças, combates ou culpabilidades. Acontece, simplesmente. Não é assunto de grande alarido e chega a ser quase paisagístico – tens que ir ver a nova casa dos nossos antigos vizinhos, está numa óptima localização, espaçosa, largueza de vistas que vão até ao muro branco do fim do mundo… – e outras coisas assim de banais e passageiras.

Famílias e namorados solitários gostam de passear de automóvel pela Rua da Estrada que separa os dois mundos. Diziam que era um abismo negro sobre um mar de vidro e fogo, uma fornalha de onde saíam gritos, corpos despedaçados, risos de escárnio e baforadas de enxofre. E havia um grande temor. Afinal, é calmo, seguro, rarefeito. As casas dos mortos parecem suspensas e pelo azul do céu passam de vez em quando andorinhas e aviões em perfeita harmonia a diferentes altitudes. Pela noite cintilam imensidões de estrelas.

Para além da estrada que delimita o fim do mundo pela base do muro, a erva seca e o terreno endurecido não atraem nada que tenha préstimo para alguém. Não se vislumbra nada da vida ou da morte que se possa deduzir da aspereza da erva; os deuses e as suas destruições e criações não deixaram fornalhas ardentes ou paraísos amenos; massa rude e disforme, rasteira, a natureza desistiu.

SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.

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