NÃO é preciso uma massa encefálica por aí além para entender o desgosto e a frustração de quem tem asas e não pode voar, nem sequer uma coisa breve para subir um pouco, ganhar vistas e horizontes, descrever duas espirais e voltar suavemente a aterrar. É um desespero; uma coisa que dá vontades de exorbitar o virtuosismo do falcão ou do condor, de ter penas mais sofisticadas que as de uma águia, a loucura de qualquer pássaro a riscar os ares na direcção que lhe der na gana.
Por isso Ícaro se desgraçou. Aquelas asas magníficas, a facilidade com que desprendeu amarras de Creta, o mar cada vez mais longe, mais transparente, as ilhas como pontos minúsculos, a cabeça mais rarefeita com a bebedeira de azul, o fascínio do sol e das alturas. E foi o que foi. Asas de penas dos outros, cosidas com linhas e coladas com cera, é muito primitivo como engrenagem de voo. A ambição também tem que ter correspondente tecnológico à altura.
Os frangos não sabem nada de mitologia e, sobre tecnologia, têm conhecimentos vagos sobre coisas que os humanos desenvolveram para reproduzir, engordar, matar e comer frangos ou produtos à base de frango. Sobre técnicas de assar, por exemplo, só se (não) apercebem quando é demasiado tarde e já estão degolados, depenados e abertos ao meio sobre brasas, picante ou normal. Porém, muitos conheceram a arquitectura do aviário, o espaço concentracionário reduzido até à completa promiscuidade, a comida e a água doseadas por controlo remoto, a alimentação repleta de hormonas e outros aditivos para crescer o necessário em menos de um mês, a engenharia genética de origem que reduziu a diversidade da espécie a meia dúzia de protótipos brancos ou castanhos replicantes e tudo o mais que compõe a violência da produção industrial de galináceos.
Existe agora alguma luz ao fundo do túnel, ou melhor, à beira da estrada.
Um certo frango que conseguiu reunir mais neurónios quando ainda estava dentro de um ovo numa chocadeira, passou parte da sua vida numa capoeira ao ar livre num lugar de onde se viam passar muitos aviões no céu desenhando linhas brancas finíssimas que se esbatiam e transformavam em nuvens. Devido às suas limitações pueris, pensava o jovem pinto que aquilo era a fase final de uma sequência de metamorfoses da qual ele só conhecia uma das primeiras: de rebolo de penugem amarela macia que faz sorrir carinhosamente os humanos e se presta a personagem de desenhos animados, essa coisa minúscula iria depois crescer, metalizar-se, motorizar-se, ganhar alturas e velocidades. Não via ninguém assim por perto mas era normal – não caberiam ali, não comeriam aquela ração castanha granulada de baixo poder energético. Ficava desolhado só de pensar em golfadas de gasolina aditivada pela gorja, abraçado a dois reactores.
E assim aconteceu. Em homenagem a este pioneiro da aviação galinácea, ficou esta escultura hiper-realista do frango a jacto, a crista repuxada pela vertigem, as pernas esticadas a comandar o leme e dois motores debaixo das asas – adeus esterco do galinheiro, farinha seca, vida inútil, mundo pequeno.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.