ADIVINHAR o futuro ainda é para muitos uma espécie de bruxedo do antigamente. Consultava-se o mediador comunicante com o insondável para que ele nos antecipasse os nossos medos e esperanças; jogavam-se os dados e as cartas, observava-se o voo das aves, ouvia-se a voz da vidente, do oráculo, da sacerdotisa ou do feiticeiro em busca de interpretações, de enigmas premonitórios que sugeriam isto ou aquilo. O futuro é um tempo problemático.
Cronos, o deus grego, tanto era entendido como uma divindade do tempo cíclico das colheitas – por isso era representado com uma gadanha que depois passou a ser a ceifeira das vidas nas mãos da morte -, como um terrível devorador dos seus filhos porque tudo o tempo consome; outras vezes ainda, um deus de um tempo indeterminado e eterno. Muitos tempos que contrariam o tempo único e infalível dos relógios.
O pensamento moderno inaugurou a sua própria versão do futuro. Consistia em desligá-lo do passado, em construir um alicerce ideológico sobre a tábua rasa donde a linha do progresso se soltava para o horizonte das coisas por acontecer. A razão e o conhecimento seriam a máquina precisa de fazer futuro. Quanto mais conhecimento, maior capacidade de prever o futuro, construindo-o com as peças certas, as racionalidades cristalinas para que nada fosse inesperado ou aleatório. A razão é um vício.
Não funcionou. Continuam os planetas nas suas órbitas precisas; quatro pontualíssimas marés a secar e a molhar a areia das praias todos os dias; as luas, as cabeleiras dos cometas em suas deambulações precisas, as pedras que rolam de cima para baixo, milhões de coisas minúsculas, infinitas, liminarmente simples ou completamente indiscerníveis, tudo isso repete ciclos constantes ou aponta futuros tão longínquos quão insignificantes para os dias que correm. Apesar de tudo isso, não há limite para o caos, não há esquina ou fenda onde não se possa insinuar e aí tecer os seus encantamentos, o não previsto por ninguém, o surpreendente sonho ou pesadelo, a mais despercebida bifurcação que lançou a raiz para onde ninguém pensava que fosse.
Não há forma de instalar outra vez o futuro. Quando parece tudo claro e preparado, o futuro escapa-se para lugar ou tempo incertos, deixando-nos o presente contínuo, o trabalho esgotante aplicado em decifrar o rumo das coisas, em construir alternativas para aquilo que não aconteceu como se pensava e constantemente rever o futuro cada vez mais próximo do presente.
É previsível que não se saiba quem vai ocupar as futuras instalações. É completamente certo que não se saiba quando é que isso vai acontecer. Se ninguém limpar, os vidros vão ficar uma lástima e a tinta do letreiro vai estalando, descolando-se dos vidros, partícula a partícula até a mensagem ficar indecifrável.
O parágrafo anterior é uma previsão do futuro – nada garante que assim seja.
SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.