DE Luanda para N’Dalatando, depois para Malanje e Saurimo…, vai uma estrada que fervilha de tráfego de camiões que tudo levam para abastecer a gente dos planaltos. Por aí rolava um desses camiões com uma carga de colchões de espuma, uma imensa pilha gingando com as curvas, as mudanças de velocidade, os buracos e, sobretudo, as travagens bruscas. No bar das gasosas e das cervejas frescas, o equilíbrio da carga não resistiu aos embalos da manobra de estacionar e desmoronou-se.
Liberto das cordas que o oprimiam, ficou assim aberto o grande livro das páginas amarelas para dormir sobre os assuntos por registar. O livro não tem título; as páginas não têm letras nem numeração. As folhas não voam ao vento.
Passado o susto, cuidadosamente, uma a uma, as folhas amarelas foram outra vez encasteladas no camião e presas por cordas azuis e laranja e a carga seguiu.
Assim vai Angola, um falso livro aberto, desencadernado, ainda quase todo por escrever; uma viagem cheia de imprevistos, muitas páginas fora do lugar e sem ordenação certa.
Ao fundo havia uma jovem que vendia duas canas-de-açúcar; sem demasiada insistência, pedindo cem quanzas. Em Luanda esse dinheiro daria para nada.
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo, Volta a Portugal e Paisagens Transgénicas.
Publicado originalmente em 16 dezembro de 2015