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Rua da Estrada do outro mundo

Rua da Estrada do outro mundo

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A CONSCIÊNCIA da finitude e as interrogações sobre os sentidos da vida explicam quase todas as angústias, os muitos rituais, crenças, fantasmas e, sobretudo, a necessidade de inventar outro mundo e encontrar o que fazer com os mortos e a morte. Porque a morte é um rasgão terrível na organização da elaborada teia dos afectos e dos laços sociais, essas respostas individuais e colectivas terão que estar à medida do assombro.

Dizem certos entendidos que a sepultura criou a cultura[1]. Em vez da indiferença do animal face ao cadáver, há pelo menos uns cinquenta mil anos de história e pré-história que os humanos nos deixaram os mais diversos testemunhos da inumação ritualizada dos mortos. O medo do fim e dos seus tão abstractos e terrificantes enigmas, terá espevitado os artifícios do pensamento, da expansão do universo mágico à procura de uma explicação e de um sentido para o caos do mundo, da invenção do sagrado para acomodar o mistério e a incompreensão, da religião e dos seus rituais, e quem sabe, da própria linguagem capaz de transmitir tudo isso e ocupar os silêncios constantes sempre que uma inquietação se pudesse manifestar.

Com toda esta artilharia simbólica, a morte ultrapassa a sua condição de aniquilação abrupta e irreversível e transforma-se em passagem para outra condição que sobrevive ao corpo em forma de alma ou de espírito. Ao mesmo tempo, os sistemas de crenças e as instituições religiosas vão enquadrando melhor estes mistérios, produzindo toda uma série de rituais, prescrições, incensos, feiticeiros e sacerdotes que re-ligam (religião provém do latim religare) o mundo dos vivos ao dos deuses e dos mortos: “trata-se de algum modo de iludir a morte, seduzi-la, convence-la a desfazer-se do seu absurdo primitivo e brutal[2]

Longe do paleolítico, da ditadura da santa inquisição ou das racionalidades tecnocientíficas dos modernos, aí está novamente a figuração da morte na Rua da Estrada no meio da bricolage mitológica (assim lhe chama Lyotard) dos nossos tempos e da diversidade de crenças e rituais que lhe assiste. Nestas paragens, as tumbas vazias, como monumentos sem epitáfios, flores ou círios, jazem como memoriais em lugar nenhum a lembrar mortos nunca sepultados.

Como se fosse o dia do juízo final na tira do asfalto, soam as trombetas e passam camiões carregados com as almas invisíveis que se vão libertando do peso dos sepulcros e das pedras polidas. Nunca se viu tanto negócio de sepulturas, saturado já por excesso de oferta como nos cemitérios do mercado imobiliário das casas e apartamentos sem gente. Virá o halloween das abóboras, doçuras e travessuras, vampiros, bruxas e erva rala a crescer pelas valetas e tudo se animará com crianças zombies vestidas de preto, olheiras e esqueletos de fantasmas montados em vassouras a jacto. Que se cuidem ao atravessar a estrada quando passarem estes cinco rodados de camião. Creio que vem aí o inverno e isto vai ficar um lamaçal.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] Éric Volant (2001), « La religion et la mort », in Jean-Marc Larouche et Guy Ménard (dir.), L’étude de la religion au Québec. Bilan et prospective, Québec, Les Presses de l’Université Laval.

Patrick Baudry (2004), « Paradoxes contemporains. Nouveaux rapports anthropologiques à la mort», in Frédéric Lenoir et Jean-Philippe de Tonnac (dir.), La mort et L’immortalité, Encyclopédie des savoirs et des croyances, Paris, Bayard

[2] Jean-François Dortier (2004) – L’homme cet étrange animal – Aux origines du langage, de la culture et de la pensée, Sciences Humaines éditions, Paris, p. 24-25.

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