O PURO Ribatejo tem um touro no coração. Não é assunto pacífico. Marialvas e aficionados da festa brava não largam o tema mas os auto-denominados amigos dos animais abominam tais práticas e actos sanguinários. Nada direi sobre o assunto. Depois de ter olhado demoradamente para a foto, reparei que o recorte do pinheiro e a posição do tronco, desenham a silhueta do peito e das pernas dianteiras do boi. Coincidências que há.
De mais difícil compreensão é o painel azul do Triunfo Bonus com caracteres chineses e erros ortográficos na escrita de Phlight que, como se sabe, deveria ser Flight. Pode ser do acordo ortográfico. Também gostava mais de pharmacia escrita assim; tinha outro estilo e a letra f tem má fama.
O Ribatejo é uma região que cedo entrou no imaginário nacional. Frei Luís de Sousa dedica-lhe uma descrição em 1623:
«(…) Faz aqui o rio [Tejo] huma agradavel divisão, deixando a parte direita, e occidental, onde fica a Villa [de Santarém], tudo o que ha de montuoso, e à esquerda estendidas campinas, que fertiliza com suas enchentes, como faz ao Egypto o seu Nilo. E com tudo tal fertilidade tem os montes, que se atrevem a competir com os campos. Por que se estes são ricos de todo o genero de grão: enriquece os montes hum bosque contínuo de olivais, que os cobre até os muros da villa. E da mesma maneira que os campos parecem cheios de fermosos casais, e instrumentos de lavoura, e povoados de todo o género de criação de gado; assi polos montes se vem infinitas quintas de bom edifício cercadas de vinhas, e pomares, regadas de fontes e arroyos (…)»[1]
Depois virá Garret com as Viagens na Minha Terra (1846) e mais tarde Alves Redol (Gaibéus em 1939 e Barranco de Cegos em 1961, por exemplo). O romantismo de Garret e o Neo-realismo militante de Redol pintam Ribatejos completamente diferentes. Os touros e os campinos são parte de uma sociedade agrária pré-moderna extremamente contrastada entre muito ricos e pobres, senhores e criados como no Alentejo. Na tourada o cavaleiro é aristocrata e os forcados são a plebe, tal como no fado a aristocracia boémia se apropria de um género musical dos bairros pobres de Lisboa. Os dois modelos coexistem nos Marqueses de Marialva dos tempos de Pombal, escritores e praticantes das artes de cavalaria e frequentadores das vielas da Mouraria fadista. Citando Cardoso Pires, Miguel Vale de Almeida escreve que uma das primeiras utilizações do termo “marialva” como categoria social surge com Braz Fogaça (1876) que publica um folheto intitulado Os Marialvas, no qual descreve as aventuras dos miguelistas e dos menestréis da guitarra, definindo os traços de um «autoritarismo e de uma alienação anti-cultural contra um Portugal europeizado»[2]. Não há espaço para continuar estes ensaios marialvistas entre o Ribatejo e Lisboa.
Agora o Ribatejo está noutro registo mais universal. Há cada vez menos touros negros e cada vez mais campos de tomate e pimento, vinhas, gado para carne, milho, hortícolas… para as multinacionais da agro-indústria e do agro-negócio. Por isso se torna cada vez mais difícil meter o coração, o boi, e o Triunfo Bonus em chinês phlight no Ribatejo que deixou de ser puro. Será mutante, rugoso, mestiço, impuro.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.
[1] Frei Luís de SOUSA (1623), Primeira parte da Historia de S. Domingos, particular do reino e conquistas de Portugal, Vol. I terceira edição, Lisboa, typ. do Panorama, 1866, p.151 (ed. original, 1623).
[2] Miguel Vale de ALMEIDA (1997) Marialvismo. Fado, touros e saudade como discursos da masculinidade, da hierarquia social e da identidade nacional, Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 37, (1-2), pp. 41-66
http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2008/06/marialvismo1.pdf