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Rua da Estrada do relicário

Rua da Estrada do relicário

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TUDO o que não se entende, se revela de forma fugaz, tudo o que nos parece grandioso e “transcendente” (que se revela para lá do que se conhece), tudo o que é insólito, novo, inexplicável, tudo o que nos maravilha e surpreende os sentidos e as emoções…, se pode transformar numa hierofania, numa manifestação do sagrado.

Pois se foram os homens que inventaram os deuses e os adoptaram, como poderia existir tão grande recusa ou dicotomia entre a sacralização e a secularização?

O homem profano passa a vida a inventar os seus lugares santos, as suas relíquias e as suas coisas mais ou menos sagradas.[1] Agora com isto das mudanças climáticas, do CO2, e dos desastres naturais em directo pela TV, está a voltar a deusa Natureza como demónio ameaçador e, em vez de cruzes e alminhas, espalham-se os vidrões nos caminhos e os papelões, e em vez do jejum eucarístico são os dias sem carros, e em vez das procissões são outras peregrinações e caminhadas a pé e… “a natureza agradece”.

Como é que se pode dizer tal coisa. A natureza, como quase tudo o que os humanos inventaram como dispositivos verbais para denominar as coisas que os rodeiam, é doida, imprevisível e dada a excessos. Há vírus (natureza microscópica) que são piores que demónios; há asteroides vagabundos (natureza interplanetária) que a todo o momento se suicidam, destruindo tudo que encontram no caminho; há ratazanas (natureza nojenta) que só servem para transportar maleitas; há trovoadas (natureza ruidosa) que dão cabo de tudo; existem magmas e vulcões (natureza ardente) que eram perfeitamente dispensáveis. A natureza que agradeça aos cientistas, sem os quais não existia, nem tinha nomes ou classificações e permaneceria para todo o sempre como coisa povoada por ninfas doidas e monstros serenos.

Outra coisa é o sofrimento dos humanos e as suas fragilidades que o racionalismo ateu teima em infantilizar ou ridicularizar quando se procura consolo no sobrenatural.

Escrevia Fernando Pessoa que o fenómeno religioso é um elemento dissolvente das sociedades:

O fenómeno religioso é um elemento dissolvente das sociedades. Ou a religião é tradicional, e é um elemento de estagnação, de resistência ao desenvolvimento social; ou é uma religião nova e é uma perturbação social, como o foi o Cristianismo no Império Romano. O pior é que a plebe é estruturalmente religiosa, nem pode ser senão religiosa. Por isso a predominância do espírito religioso numa sociedade representa a predominância do espírito popular, a degradação do espírito de aristocracia e escol, pelo qual as sociedades se governam e progridem.

Vemos hoje em conflito, por quase todo o mundo, e por isso entre nós também, duas religiões: o Cristianismo, progressivamente regressante ao tipo católico, e o bolchevismo. O bolchevismo (entendendo por bolchevismo o sindicalismo revolucionário e o comunismo, e não só este último) é um fenómeno reaccionário e religioso. Nada tem de propriamente social, nem podia ter, porque, se o tivesse, não o poderiam adoptar as plebes, incapazes de outra coisa que não de religião.

É facil provar o carácter reaccionário do bolchevismo, como é facil provar o seu carácter religioso – mais fácil ainda[2].

Por Deus! Não conhecia esta vertente radical e pregadora do poeta transformado em luminária esclarecida que transforma a polémica de Fátima numa guerra de religiões entre o bolchevismo, o tradicionalismo católico e a perturbação social das aparições ou, como diz um prelado encartado, visões místicas. Não percebo a diferença entre o fenómeno religioso, o reacionário e o propriamente social, este último porque, entre outras coisas, não poderia ser adoptado pelas plebes. Mistérios aristocráticos. Nem os poetas são perfeitos.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] cf. ELIADE, Mircea (1957) Le Sacré et le Profane, trad. fr. 1965, rééd. Gallimard, Paris

ELIADE, Mircea (1994),Tratado de História das Religiões, Edições Asa, Porto (ed. original francesa,1953).

[2] Fernando Pessoa , s/d, O fenómeno religioso é um elemento dissolvente das sociedades in http://arquivopessoa.net/textos/2465

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