VAGUEANDO por estradas de Odemira, coisa exótica e rarefeita, revelam-se de quando em quando raras aparições com anúncios escritos em línguas vivas a apregoar palavras mortas para vender coisas “embebidas (repetindo a expressão usada na própria publicidade deste negócio) de toda a ruralidade do Alentejo” para clientes (continuando a repetir a mesma fonte) “agricultores profissionais, agricultores em Part Time, Novos Rurais e Turistas” – assinalem-se as maiúsculas nas respectivas categorias.
Embebida é uma curiosa maneira de entender a ruralidade: pega-se em qualquer coisa e coloca-se em banho-maria durante tempo suficiente para essa coisa ficar impregnada, assim como pêras bêbadas em vinho tinto e canela.
O Alentejo é um verdadeiro repositório da reciclagem da velha ruralidade que muitos teimam ainda existir. É que as palavras tendem a ficar depois de ter acabado a realidade que designavam e, por isso, o seu falsete é mais mágico e definido do que porcos pretos em fundo de casas brancas. Na agricultura, de novo, há papoilas opiáceas, olivais que parecem infinitas sebes de arbustos regados, videiras debaixo de plástico e outras que não, e toda a espécie de estufas que se possa imaginar, fechadas e abertas, e avestruzes, e searas fotovoltaicas e grandes lagos. Tudo tecnológico, hipermoderno, holandeses, israelitas, capital global, e trabalhadores do Nepal. É trigo loiro, é Alentejo…, cantava a Simone, desfolhando versos do Ary dos Santos pressagiando cravos num certo Abril. Onde isso vai…
Que vertigem que está esta terra tisnada pelo sol, pela seca e pelo trabalho de escravo em séculos de latifúndio; que extraordinários primores constantemente brotando, embebidos entre o passado mais que perfeito e o futuro esfumaçado, em verdade vos digo eu…
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada, Vida no Campo e Volta a Portugal. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
Publicado originalmente em 5 de setembro de 2015