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Rua da Estrada do sono profundo

Rua da Estrada do sono profundo

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CANSADO de esperar pelo seu amo ou por um transporte que dali o levasse, Uber, camioneta ou veículo de controlo remoto, e moído de amofinações pelos constantes delírios e desacatos de D. Quixote, Sancho decide deitar-se no banco da paragem do autocarro, pôr o colchão ao alto e dormir o sono dos justos e dos invisíveis.

“… o que entendo é que quando estou a dormir, nem tenho temor nem esperança, nem pena nem glória; e bem-haja quem inventou o sono, capa que encobre todos os pensamentos humanos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo que alenta o frio, frio que mitiga o ardor, e finalmente moeda geral com que tudo se compra, balança e peso que iguala o pastor ao rei e o simples ao discreto. Só uma coisa má tem o sono, segundo tenho ouvido dizer: é parecer-se com a morte, porque, de um adormecido a um morto, pouca diferença vai.”[1]

Assim, sem mais considerações, sem se deixar capturar por razões mesquinhas que abundam no mundo alucinado das coisas práticas e racionais, Sancho interrompeu o tempo temendo apenas certos pressentimentos vagos de risco de morte intermitente que bem valiam arriscar a serena suspensão para onde o sono nos empurra. Talvez ao acordar o seu amo lhe presenteasse a ilha há muito prometida e então seria governador.

Enquanto isso, errante, descomposto e lúcido-estapafúrdio, Quixote permanecia algures em vigília por trás dos arbustos revendo as verdades do mundo que estão escritas nos romances de cavalaria e que por obra de enfeitiçamentos e magia se desfiguram em simulacros de realidade onde os moinhos são gigantes, os rebanhos são exércitos, as meretrizes e taberneiras são damas, os frades, feiticeiros…, como quem desfia um novelo de acontecimentos, semelhanças e nexos que alguém dispersou pelo mundo e que aparecem de súbito reencontrados aos olhos do cavaleiro da triste figura.

Assim vamos entre Quixotes e Sanchos a preencher os buracos do desvario do mundo, uns por entre excessos de realidade ficcionada e arremessos repetidamente frustrados, e outros por adormecimento terapêutico. Hiperactivos e anestesiados, de jerico ou de rocinante, raramente firmes.

Nestas paragens à ilharga da rua da estrada já não passam cavaleiros andantes e escudeiros; Dulcineia perde-se nas cavalarias andantes do facebook e a realidade, bastante calcetada, é simplesmente o que o Sol ilumina.

Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.

[1] Miguel de Cervantes (1615 ), O engenhoso cavaleiro dom Quixote de La Mancha, II/ Capítulo LXVIII — Da aventura suína que aconteceu a D. Quixote.

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