OBRIGADO é uma expressão simples cujo significado parece não colocar quaisquer dúvidas. Não é assim. Quando nos ficamos pelos sentidos genéricos das expressões que nos saem quase em modo automático, caímos no abismo do senso comum que é conhecido pela facilidade de tramitar o que quer que seja através de um infinito jogo de espelhos onde as coisas tomam os mais diversos sentidos consoante a circunstância.
Os dons dos deuses e as dádivas das almas caridosas podem implicar ou não uma troca negociada, um jogo de contrapartidas e obrigações mútuas. No entanto, os presentes podem ser envenenados, como se sabe. O próprio sentido da troca – de cartas, de insultos, de meio de transporte, de direcção…- pode variar entre sentidos económicos, comunicacionais ou até de circulação de tráfego ou outros fluídos e cibernéticas. Trocar, transferir, distribuir e partilhar podem também ser coisas muito diferentes envolvendo variados mecanismos de reciprocidade obrigatórios ou não, e critérios e medidas de equivalência – quem pingas bebe, pingas deve, diz o povo sedento.
Entre os humanos o assunto é tão importante que pode ser até entendido como um dispositivo importantíssimo de organização de vida em conjunto, de sociedade, como explicou Marcel Mauss no seu Ensaio sobre o Dom (1924). Nas sociedades sem Estado e sem mercado capitalista onde os indivíduos e os grupos estariam mais dependentes de si próprios, a troca, a dádiva, a oferta, o favor, etc., seguiam complicadas regras costumeiras para regular, nem que fosse através da chantagem, da ameaça ou da vingança, aquilo que era considerado exigível e o que distinguia a violência legítima de ilegítima para garantir essa exigência. Thomas Hobbes, no seu Léviathan (1668)[1] sobre o poder e a sua ideia benigna da monarquia absoluta gerindo os caprichos do povo, distinguia o contrato do dom (free gift, grace), um favor ou dádiva graciosa para comprar ou assegurar a amizade de outro, ou então granjear uma reputação de grandeza de alma que até seria recompensada no paraíso.
Rousseau (Discours sur léconomie politique, 1775) partindo do princípio que o povo não se pode governar a si próprio, afirma que “o povo, apercebendo-se mais da ganância e do esbanjamento dos chefes, do que do seu cuidado em assegurar necessidades colectivas, protesta por se ver privado do necessário para garantir o supérfluo ao outro; quando esta situação vai azedando até um determinado limite, a mais íntegra administração não conseguirá restaurar a confiança.” Por aqui se escoa a estima e o agradecimento que se transformam em ódio que deixa de se poder gerir com doses ensaiadas de cenoura ou paulada.
Há aqui dois cartazes que devem ter a ver com isto. Num deles, um senhor com ar respeitável e uma multidão de amigos sorridentes agradecem ao povo angolano; no outro, esfolado e meio desfeito, apenas se percebe LUTA PELA VIDA. Deve ser isso. O povo angolano luta pela vida para oferecer coisas àquele magote de gente feliz que agradece que assim se faça e está tudo explicado. Gente educada, é o que é.
Que generoso que deve ser o povo para assim merecer tantos metros quadrados de cartaz publicitário e sorrisos espalhados pelas esquinas das estradas. Por cada um desses sorrisos, milhões lutam pela vida na indignidade do musseque, no desamparo de quem nada tem a não ser uma réstia de alegria que ficou do fim da guerra civil e da promessa de um país novo. Resta-lhes o mundo ficcional da televisão que não se cansa de propagandear os progressos que acontecem por todo o lado, o mundo prodigioso que vai surgir, as memórias míticas da Rainha Ginga… e a revelação dos “Transparentes” de Ondjaki (2012):
“- mas quem manda em tudo isto?
– gente muito superior.
– superior.. como deus?
– não. superior mesmo! aqui em Angola há pessoas que estão a mandar mais que deus.”
[1] HOBBES, Thomas, 1651, Leviathan, or the Matter, Form, and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil, Londres, Andrew Crooke. Tr. fr., introduction et notes de François Tricaud, Léviathan. Traité de la matière, de la forme et du pouvoir de la république ecclésiastique et civile, Paris, Sirey, 1971, p.133.
ATHANE, François, 2008, Le don, Histoire du concept, évolution des pratiques, Université Paris X, École doctorale Connaissance, Langage, Modélisation (thèse de doctorat en philosophie).
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.