SABES disto da realidade aumentada? Eu não, pergunta àqueles dois que estão no meio dos jarrões. Já perguntarei…, mas não vai ser fácil, desde que aqui estamos que eles mantém aquelas focinheiras imóveis a olhar prá frente com ar mal disposto. É muito macho junto. Estou farto de dizer que ponham aqui leoas e ninguém faz caso; em vez disso puseram-nos aqueles cavalos guilhotinados que estão no portão, coisa despropositada e cruel. Quantos automóveis já passaram aqui hoje? Sei lá eu? Pensas que não tenho mais que fazer do que contar carros? Tens? Tenho, claro, conto aviões só pelo ruído que fazem, por exemplo, sonho com filmes da selva e espero o sol e uma pelagem mais dourada. Esse aí do lado é um antipático, nunca se vira para nós. Deixá-lo. Aqueles dois pares de humanos passam a vida no marmelanço, é um exagero, são tarados como todos os humanos. Quem te falou da realidade aumentada? Há mais realidade do que a que conhecemos? Vês este com aquele aparelho a apontar para nós? São fotografias, estou farto de te dizer, guardam a nossa imagem para mostrar. Não sei…, há aparelhos muito parecidos que quando são virados para qualquer lado aparecem lá uns animais amarelos chamados pókemones… São felinos? Muito pior, são animais electrónicos, coisa muito diferente de nós que é só cimento, ferro e tinta branca. E depois? Levam-nos para pôr nos jardins e nos portões como nós, a fonte, as cabeças dos cavalos, os beijoqueiros e os jarrões? Não, depois é muito complicado; os humanos apanham os pokémones selvagens, treinam-nos em ginásios, entram em lutas e isso, como fazem connosco desde o circo dos romanos. Os humanos são loucos! Pois, isso já sabíamos. Pensa na parte boa. Nós, por exemplo, substituímos lindamente os nossos semelhantes biológicos que eles caçaram até não poder mais. Fazendo a evolução do cimento para a electrónica e dos animais reais para os imaginários, os humanos vão evoluindo para a criação de uma natureza própria que não tem nada a ver com a dos nossos avatares felinos da selva e do circo – isso é a tal realidade aumentada, percebes?
Percebi mais ou menos. Como são loucos, enquanto vão aumentando a realidade, aumentam também a loucura, uma coisa não vai sem a outra. Olha, lá vai outro carro; não tarda nada e chove; pois, parece que estou a ouvir um avião; achas que os cavalos guilhotinados conseguem pensar os cascos que não têm? Não tenho ideia, e as leoas? Isso é que era…
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.