ESCREVEU Fernando Pessoa (que continua sendo cidadão muito estimado): A primeira verdade da sociologia — ciência, aliás, conjectural e imperfeita — É que a humanidade não existe. Existe, sim, a espécie humana, mas num sentido somente zoológico: há a espécie humana como há a espécie canina. Fora disso a expressão humanidade pode ter somente um sentido religioso — o de sermos todos irmãos em Deus, ou em Cristo. Entre o sentido zoológico, que está aquém, e o religioso, que está além, da sociologia, não cabe sentido nenhum. Sociologicamente, não há humanidade, isto é, a humanidade não é um ente real.
Na realidade social há só dois entes reais — o indivíduo, por que é deveras vivo, e a nação, porque é a única maneira como esses entes vivos, chamados indivíduos, se podem, agrupar socialmente de um modo estável e fecundo. A base mental do indivíduo, por isso mesmo que é indivíduo, é o egoísmo, e os indivíduos podem agrupar-se só em virtude de um egoísmo superior, ao mesmo tempo próprio e social. Esse egoísmo é o da pátria, em que nos reintegramos em nós através dos outros, fortes do que não somos.[1]
Não convém ser-se anacrónico, transportando para hoje um pensamento datado e um contexto muito diferente do que agora se vive e sente. Da trilogia humanidade, nação, indivíduo, não se sabe muito bem o que desta prosa se pode aproveitar.
A humanidade no sentido zoológico está em metamorfose por via da instabilidade da espécie. Existem humanos expandidos com todo o tipo de (bio)tecnologias e outras próteses, e existem milhões de desgraçados que nem humanos parecem por força da desumanidade a que estão submetidos. Perdeu-se o todo e mesmo se existirem irmãos em deus, de certeza que não é o mesmo deus e a mesma irmandade. Apesar da retórica oca dos princípios, dos direitos e de outos redondos e piedosos documentos a propósito de tudo e nada, a enxurrada humana segue aos encontrões. Só de muito, muito longe é que o planeta é azul e se parece com a totalidade que julgamos ver numa esfera. Roda como louca.
A nação – a pátria ou a mátria para os mais românticos ou mitológicos -, anda a desvanecer-se. Já foi monólito, peça dura dotada de limites precisos, regras próprias e ilusão de impermeabilidade. Tudo que se movia para fora e para dentro era escrutinado, registado, controlado. Tudo, tudo, não, mas a própria palavra clandestinidade só existia porque havia um regime dominante que a definia como tal. Perdeu-se entretanto a clareza da separação entre o interno e o externo. Tudo é interior e exterior ao mesmo tempo e segundo várias topologias e geografias.
Impossível de existir sem as referências que o designam e o distinguem, o indivíduo é uma incógnita, um ponto móvel entre infinitas redes, um artigo indefinido. Preso a um poste parece estável e perfeitamente recortado. É só porque está preso e não tem espessura.
SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.
[1] Fernando Pessoa,(sem data), Sobre Portugal – Introdução ao Problema Nacional, (recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979, p.19. in http://arquivopessoa.net/textos/3583