A RUA da Estrada que não funciona perdeu o asfalto. Regressou à terra. Resta a gravilha, sulcos de terra que o sol irá empoeirar ou lamaçal quando vierem as grandes chuvas.
Outros tempos houve em que o bulício não despegava. Para a grande catedral branca rumavam toneladas de grãos de trigo em camiões e do comboio que ali passava iam e vinham outras mercadorias e outra gente que agora deu sumiço. Era a estrada que cruzava a estação, o caminho-de-asfalto e o caminho-de-ferro, esfolado um e desferrado outro. Ficou a estação do tempo salazarento, monumento de arquitectura do Portugal dos Pequenitos. Que o ar lhe seja leve e fresco como o que enche os cilindros brancos do gigante ali ao pé.
Sem préstimo, as casas perderam os telhados, as janelas, as portas, o reboco. As que ainda resistem, escurece-lhes a cor nas paredes, enferrujam-se e apenas servem para que alguma coisa sem serventia se vá acumulando encostada à parede ou pousada no poial de pedra onde muitas conversas se sentaram quando era verão do lado da sombra ou ao serão das noites quentes.
Pouco a pouco o futuro vai moendo este fado atrapalhado, regurgitando montes de entulho, terra, pedras onde crescerá erva ou outra natureza selvagem. São escórias, resíduos deste lento e longo processo de fundição do passado imperfeito.
Por exercícios virtuosos da acústica do cilindro oco, os silos são um fenómeno. É ver essa potência quando os casais de pombos ou rolas aí procuram abrigo para os ninhos e para a criação e se solta uma sinfonia amplificada, ecos do namoro em revoada pelo oco descomunal deste improvável pombal.
Por tais prodígios, o génio da lâmpada – perdão, não era este -, a fagulha empreendedorista faísca então com os olhos vidrados de tecnologia, gravadores ultrassensíveis usados na bioacústica, smartphones e tudo, fazendo dos ninhos, ninhos de empresas e do silo, uma chocadeira, uma incubadora com lounge, serviços de mentoring, coaching, wireless, co-working e outras palavras do acordo ortográfico de onde sairão startups e pin-ups.
É só esperar pelo eclodir dos ovos. Os borrachos sofrem de fome crónica – como os outros, de sede – reclamando a presença dos progenitores que lhes regurgitam uma porcaria qualquer pelo bico escancarado abaixo e retomam o arrulhar amplificado e multiplicado em ecos. Munidos com prótese de nano-palhetas de grafeno escaldado, os pombos redobram a capacidade canora e a variação tímbrica, dos ultra-sons aos infra-vermelhos. Os empreendedoristas passarinheiros venderão paletes de sons esquisitos para calar a fome dos ruídos do mundo e o seu reino não terá fim – tweets, gorjeios do silo do melhor que há na ornitologia electrónica aumentada desta natureza sintética em construção.
Adeus fado triste da ruína. Não haverá nada que não seja pago pelo negócio dos decibéis, o asfalto novo, a casa portuguesa pequenita transformada em alojamento local, a ruína desorbitada sem telhado feita em restaurante gourmet, o barraco de porta e janela a vender recuerdos sem parar, sem parar.
SOBRE O AUTOR:
Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da Estrada. Colabora com o Correio do Porto desde janeiro de 2015.