1.
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quebradiço da forma.
Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade
que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.
2.
O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;
desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;
têm sempre o mesmo compasso
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:
dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários
para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,
de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.
3.
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;
ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
e máquina independente
de operação operária.
De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:
quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graças a um fluido que a passa;
que fluido é ninguém vê:
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.
E porque tampouco cabe,
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.
4.
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;
outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.
Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;
se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria,
incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)
que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.
Por João Cabral de Melo Neto, Antologia Poética, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1979, pág. 68 [poema pertencente a Serial (1959-61)]